Os seguros diante dos desastres socioambientais

Confira artigo de Pery Saraiva Neto, Advogado, consultor jurídico e professor. Doutor em Direito/PUCRS. Mestre em Direito/UFSC. Especialista em Direito Ambiental/FUNJAB-UFSC

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Em dezembro de 2015 vivenciamos a maior tragédia ambiental de nossa história, com o desastre em Mariana. Causa perplexidade que pouco mais de 3 anos após o trágico episódio sejamos surpreendidos como uma nova catástrofe, que em termos de vidas humanas é imensamente mais grave, causando indignação a constatação de que tudo se deu e se dá no mesmo Estado da Federação, em um mesmo tipo de empreendimento e envolvendo basicamente os mesmos atores.

Lamentavelmente, catástrofes não são uma novidade. Desastres humanos e ambientais se repetem à exaustão. Emblemáticos os casos de Seveso (Itália, 1976), Three Mile Island (EUA, 1979), Bhopal (Índia, 1984), Chernobyl (Rússia, 1986) e Exxon Valdez (EUA, 1989). Desastres decorrentes de rompimento de barragens estão longe de ser fatos isolados¹. Embora tais ocorrências, poucas foram as lições até hoje aprendidas.

Como alerta Delton Winter de Carvalho, é preciso urgentemente aprender a lidar com os desastres², para efetivamente construirmos formas de preveni-los e enfrentá-los. Uma das maneiras de promover esse aprendizado será com uma profunda reflexão pública sobre cada uma das fases do chamado “ciclo dos desastres”³, quais sejam: prevenção e mitigação, resposta de emergência, compensação e reconstrução.

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Visando contribuir com a reflexão, importa atentar às fases de compensação e reconstrução, com a possibilidade de desenvolvimento de respostas eficientes para os momentos que sucederem aos desastres, contribuindo com maior capacidade de resiliência e com redução de vulnerabilidades.

O momento em que a Presidência da República decide debater e propor a atualização e revisão da Política Nacional de Segurança de Barragens⁴ é uma oportunidade singular para discutir adequada e seriamente a instituição de soluções pelos seguros.

Pertinente tecer algumas ponderações necessárias, a modo de contribuir com esclarecimentos sobre o funcionamento dos seguros diante de casos de desastres socioambientais, inclusive para dar maior clareza sobre como e em que medida os seguros serão úteis em momentos de compensação e reparação de danos.

Tenha-se em mente, como ponto de partida, que no Brasil a responsabilidade civil ambiental alcançou contornos próprios e singulares⁵, obtidos em decorrência do entrelaçamento do instituto clássico da responsabilidade civil com basicamente duas influências, a saber: o risco ambiental – e, por conseguinte, a incorporação dos princípios da prevenção e da precaução –, e a noção de internalização das externalidades negativas, que se desdobra no princípio do poluidor-pagador⁶.

É justamente diante desse cenário jurídico que incidem os seguros, entendidos como instrumentos capazes de dar respostas à mais importante etapa do sistema de responsabilidade civil, que é justamente a de compensação, indenização e reparação, seja das vítimas, seja dos recursos naturais.

Incidentes ambientais já não são surpresas. São constantes, prognosticáveis desde a sua gênese até seus efeitos⁷. A vida humana em sociedade, intensa e perigosa, fez com que o seguro, que manifesta sobremaneira a ideia de garantia, se desenvolvesse a ponto de alcançar atualmente um lugar de destaque na vida econômica e social.

O seguro tem a função social de permitir a continuidade das atividades econômicas após a ocorrência de eventos danosos e traumáticos, pois, repondo perdas, preserva a condição econômica e social, seja do segurado, seja de terceiros. A função social exercida pelos seguros é consequência do mutualismo, ou seja, a capacidade de distribuir equitativamente, entre muitos, os prejuízos sofridos por alguns, de modo que a pulverização dos prejuízos individuais se dá com a pulverização dos prejuízos entre os segurados.

Todos estamos expostos a riscos, com a possibilidade de nos depararmos com acontecimentos que podem impactar negativamente. Esses riscos podem ser evitados ou geridos. Segundo a lógica de gestão dos riscos, uma das maneiras de fazê-lo é compartilhando esse risco (transferência de risco) com uma empresa especializada em entender e administrar riscos, que são as seguradoras. Essas, na medida em que compreendem um determinado risco, analisam e mensuram, podendo projetar a frequência de que venha a se concretizar, com uma ocorrência real de dano, e então projetam quais seriam as perdas econômicas decorrentes.

Importante notar que nessa complexa jornada de subscrição de riscos haverá, como efeito reflexo, o relevante exercício pelos seguros de uma função de prevenção, na medida em que, por exemplo, poderá localizar falhas estruturais ou operacionais, propondo soluções complementares; sugerindo a adoção de novas e melhores tecnologias; ou mesmo aprimorar modelos decompliance.

Com essa análise o segurador definirá se assume esse risco ou não. Aceitando, definirá o preço (prêmio) para assumi-lo, em um processo denominado de “subscrição de risco”, seguindo-se a celebração do contrato de seguro, vulgarmente denominado “apólice de seguro”.

A atividade seguradora pressupõe, no processo de transferência e aceitação, um exercício constante e qualificado de delimitação do risco que estará sendo aceito e que passará a ser coberto pelo segurador, de modo que “a determinação do risco segurado requer uma tarefa de dissecação prévia, individualização do risco através da naturalização do evento e do interesse sobre o qual ele recai, assim como, finalmente, sua delimitação causal, espacial e temporal”⁸.

Diante de uma barragem os riscos atrelados são diversos, e muitos poderão ser compartilhados com uma seguradora. E em um a situação limite essa poderá ser chamada a pagar pelos prejuízos do segurado, nos limites técnicos e econômicos das apólices. Nesse cenário, alguns exemplos de coberturas:

Para riscos relacionados ao patrimônio da empresa, que garantirá o pagamento da reconstrução desse patrimônio ou mesmo repor o faturamento (lucros cessantes).

Para riscos relacionados a terceiros atingidos por um desastre, quando a solução se dará pelo seguro de responsabilidade civil. Tais apólices podem cobrir riscos de natureza patrimonial e extrapatrimonial. É nesse âmbito que se incluem os seguros de responsabilidade civil para diretores e gerentes (D&O).

Para riscos relacionados à vida humana, auxiliando as vítimas na reconstrução de suas vidas ou, em casos mais trágicos, contribuir com o sustento e reestruturação das famílias.

De extrema relevância, por fim, para os riscos ambientais, relacionados às possibilidades de danos ao ambiente natural (fauna, flora, solo e recursos hídricos), quando os seguros agirão justamente para contribuir com a reparação dos danos aos elementos naturais.

Essas respostas operacionalizadas pelos seguros contemplam relevantes formas de soluções capazes de reduzir as vulnerabilidades e incrementar a capacidade de resiliência. O seguro tem um potencial enorme de contribuir com a restruturação de vidas e reorganização de empresas diante de desastres socioambientais. A experiência demonstra exaustivamente tais contribuições, em diversos eventos catastróficos⁹.

Importa sublinhar, por outro lado, que há dois elementos que são vitais para as operações de seguros: a boa-fé e a de delimitação dos riscos.

Há estreita conexão entre riscos, confiança e boa-fé. A boa-fé, enquanto princípio jurídico, tem particular relevância para os seguros. Em um mundo altamente complexo, inclusive em questões ambientais, a confiança permite uma redução da complexidade social. A confiança é pressuposto de (con)vivência, sob pena de, ao contrário, viver-se na inconstância das incertezas e do medo permanente¹⁰.

A propósito, Fernando Araújo afirma que “a solução praticamente consensual na Análise Econômica do Direito é a de que há que fornecer às partes algumas regras supletivas que ajudem a “focalizar” as suas condutas em torno de expectativas objectivamente adequadas, dados os valores em presença, às probabilidades de cumprimento, incentivando a convergência para um ponto de ‘confiança ótima’”¹¹.

Assim, qualquer obrigação ao segurador que tenha origem fora das delimitações previstas no contrato implicará em profundo impacto à sustentabilidade da atividade empresarial do segurador, o que gerará graves consequências não apenas à seguradora, mas muito especialmente a todos os outros segurados, na medida em que o contrato de seguro, pensando de forma ampla, vincula-se ao mutualismo. Essa dinâmica somente irá funcionar de forma eficiente se forem atendidas rigorosamente as regras que delimitam todas essas complexas interrelações.

O risco envolve incerteza e imprevisibilidade. A atividade seguradora vale-se de ferramentas e técnicas de racionalização dos riscos, tentanto, ao máximo, torná-los previsíveis – se não em nível de certeza, ao menos, de probabilidade. O grau de previsão e de acerto depende de diversos fatores.

O adequado acesso informacional do segurador é  elementar, desde a etapa de subscrição até o final da relação contratual. Desafios frequentes nesse processo decorrem da assimetria informacional, um problema clássico, ligados à seleção adversa e ao risco moral¹², que são situações de assimetria constantes e que permeiam não só uma dada relação contratual, mas à própria operação de seguros, de forma mais ampla¹³.

Infelizmente, muitas vezes aquilo que antes chamamos de riscos, se concretizam, quando acidentes ou eventos trágicos ocorrem. Nesse momento inicia a chamada regulação de sinistro, que é a etapa em que são feitas todas as investigações e levantamentos para verificação se o fato ocorrido estará ou não coberto pelo contrato de seguro, a forma como esse contrato deverá ser aplicado e se há alguma peculiaridade que possa implicar no afastamento da obrigação do segurador.

Um exemplo de verificação realizado durante a regulação de sinistro é a questão da variabilidade do risco, ou seja, se o risco que foi aceito pelo segurador equivale à situação de risco que desencadeou uma catástrofe. O risco inicialmente posto ao segurador poderá variar por diversas formas e razões, e no limite poderá ocorrer o agravamento do risco, que é a situação em que o segurado contribui ou permite que o risco inicial seja alterado, se tornando um risco agravado que, eventualmente, não tenha sido comunicado ao segurador. Por exemplo, deixar de fazer vistorias e controles, deixar de realizar medidas de contenção e mitigação de um risco, ou não realizar melhorias que necessariamente deveriam ser feitas para evitar uma ocorrência de dano. Inclusive a verificação sobre o adequado cumprimento das licenças e autorizações concedidos pelo Poder Público.

Nesses casos, como o segurador não foi comunicado previamente (quando poderia ter rejeitado o risco ou cobrado um valor adicional), possível negar a indenização do seguro pois, como visto, o risco que gerou a situação de dano deixou de ter correlação com aquilo que foi previamente acertado no contrato e, na prática, deixou de ser o risco previamente compartilhado com o segurador.

Atentando-se às complexas questões operacionais dos seguros – algumas delas sublinhadas nesse texto – projeta-se possível e recomendável a adoção de seguros para atividades que envolvam grandes riscos e com potencial de gerarem catástrofes, a serem exigidos na fase implementação de um empreendimento ou atividade, como condicionante para a concessão das licenças ambientais.

Referências Bibliográficas:

1 http://wise-uranium.org/mdaf.html

2 https://www.conjur.com.br/2019-jan-29/delton-winter-devemos-aprender-direito-desastres

3 CARVALHO, Délton Winter de. Gestão Jurídica Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 259.

4 RESOLUÇÃO Nº 2, DE 28 DE JANEIRO DE 2019.

5 Vide elucidativo texto de Rafael Martins Costa Moreira: https://www.conjur.com.br/2019-jan-30/rafael-moreira-responsabilidade-envolvidos-brumadinho

6 Sobre os princípios do Direito Ambiental, ver SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2014.

7 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.

8 VEIGA COPO, Abel B. El riesgo en el contrato de seguro: ensayo dogmático sobre el riesgo. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015, p. 309-310.

9 Sobre a relação entre “perdas econômicas” e “perdas seguradas”, vide interessante estudo em “Terra Report – Edição Especial – Mariana”, disponível emhttp://www.terrabrasis.com.br/wp/wp-content/uploads/2016/07/Terra-Report-Edicao-Especial-3.pdf

10 CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 1242-1243.

11 ARAÚJO, Fernando. Uma análise económica dos contratos – a abordagem económica, a responsabilidade e a tutela dos interesses contratuais. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.).Direito & Economia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 139.

12 POÇAS, Luis. O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro. Coimbra: Almedina, 2013.

13 BERGKAMP, Lucas. Environmental risk spreading and insurance. Review of European Community and International Environmental Law (RECIEL). Oxford: Blackwell, v. 12, n. 3, 2003, p. 272-273.

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