A evolução do perfil do consumidor de seguro exige uma readequação da aplicação do CDC por parte do Judiciário

Advogado da Agrifoglio Vianna, Marcelo Camargo traz reflexões internacionais sobre o tema

Apesar de tramitar no legislativo há alguns anos um projeto de lei específico para tratar do seguro, o Brasil é um dos poucos países que não tem uma legislação própria sobre seguro. Desta forma, as regras referentes a este tipo de contrato estão apenas no Código Civil, em poucos mas bons artigos.

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Conversamos com o advogado do escritório Agrifoglio Vianna, Marcelo Dias Camargo, pós-graduado no MBA de Direito da Economia e da Empresa pela FGV, que recentemente concluiu a Especialização em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), sobre o tema.

O profissional, que também é membro da AIDA – Association Internationale de Droit des Assurances/International Insurance Law Association – Associação Internacional de Direito dos Seguros e da Comissão de Seguros da OAB – RS, comenta que a reflexão a respeito do Código de Seguro brasileiro como solução para as questões referentes ao contrato de seguro e que abarrotam o Judiciário atualmente se faz necessária. Confira:

De que maneira você acredita que as discussões das temáticas abordadas em sua vivência na Universidade de Salamanca, na Espanha, uma instituição que completou 800 anos em 2018, sendo uma das mais antigas da Europa e a mais antiga daquele país, são importantes para a sociedade?

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A Universidade em si é extremamente prestigiada no mundo todo, de modo que reúne alunos de graduação, pós graduação, mestrado e doutorado de várias nacionalidades. A cidade é histórica, relativamente pequena, e gira em torno da Universidade. São milhares de alunos circulando. Todo este ambiente favorece o estudo, a imersão, e reúne pessoas com os mesmos objetivos, há uma sintonia por descobertas, por aperfeiçoamento. Então, a Universidade vem promovendo há anos estas Especializações (este ano de 2019 foi a 45ª Edição), não só de Direito do Seguro, mas em Direito Penal, Direito Civil (contratos e danos), Constitucional, entre outros, e todos os cursos são ministrados no mesmo edifício (que é histórico, um antigo mosteiro de 200 anos, preservado, mas dotado de toda uma estrutura fantástica, de alta tecnologia de comunicação, várias salas de aula, um grande auditório, equipamentos para as aulas, internet rápida, etc) e possibilita este intercâmbio com colegas de vários países e em outras matérias diferentes do Seguro. Existem aulas magnas destas outras matérias que são comuns à todas as Especializações, o que dá uma visão ampliada de estudo.

Os professores são extremamente qualificados, no caso do Seguro, faziam parte do corpo docente renomados juristas europeus e latino americanos, como o Professor Abel Veiga Copo, autor de mais de 70 obras, dentre as quais, um Tratado de Direito do Seguro de dois volumes e que está na 6ª Edição. Outros professores também renomados, de vasta produção acadêmica, ministram o curso, tal como os professores Eugenio Llamas Pombo, Carlos Ignacio Jaramillo, Andrea Signorino Barbat, entre vários outros. A qualidade do corpo docente e dos alunos, renomados juristas e profissionais atuantes no mercado de Seguro de toda a América Latina, torna a experiência muito qualificada, são apresentadas e debatidas as questões mais atuais em Direito do Seguro, em diversas matérias específicas, em seguro de danos, de vida, resseguro, transportes, etc, e sob um âmbito internacional, com cotejo de legislações espanholas, europeias, e latino americanas.

Por exemplo, o Brasil é um dos poucos países que não tem uma legislação específica sobre seguro (tramita um projeto de lei há anos no legislativo) de modo que as regras atinentes a este tipo de contrato estão apenas no Código Civil, em poucos mas bons artigos. Os demais países latinos, em geral, tem códigos de seguro, como o Uruguai, que teve a sua lei específica sobre seguros entrando em vigor em 2018. Isto é bom ou ruim para o Brasil? A positivação, o Código de Seguro brasileiro, resolveria as questões tormentosas referente ao contrato de seguro que abarrotam o Judiciário atualmente? Estes questionamentos são importantes, pensar nas respostas é necessário, e o curso contribui muito para isto, para o desenvolvimento de novas perspectivas para o trato do seguro no Brasil. Então, ter acesso a estas questões atuais, bem como, acesso aos professores e suas obras, contribui muito para o fomento deste debate, que deve ser qualificado, pena de o Brasil retroceder e cometer alguns erros que outros países cometem, ou então, de insistirmos em práticas que tanto travam o desenvolvimento do mercado segurador por aqui, e que já não são mais práticas adotadas em países mais avançados no tema.

A especialização e seu trabalho de conclusão tem relação com sua atividade na Agrifoglio Vianna Advogados Associados? Poderia nos explicar como?

Sim, a Especialização dá uma visão bastante ampla do Direito do Seguro, e um dos meus objetivos quando retornei é o de tentar informar melhor sobre o seguro, seja o leigo, seja no âmbito jurídico, que é pouco conhecido e compreendido da forma como deveria. Não se trata de ser a favor ou contra a seguradora, mas de conhecer como exatamente funciona o contrato. É uma necessidade comum. Mas evidente que, o foco do trabalho acaba envolvendo questões do dia a dia da advocacia. Neste sentido, constantemente nos deparamos, no âmbito profissional, com o pouco conhecimento da especificidade do seguro, especialmente pelo Judiciário quando envolve o consumidor, uma relação de consumo. Este é um grande problema, não só para as seguradoras ou segurados, mas para o sistema todo. Não compreender o contrato e seus elementos leva o juiz a cometer erros, que descaracterizam o contrato, alteram riscos, coberturas, e consequentemente violam o mutualismo. No trabalho, especificamente, abordei a necessidade de reforço dos institutos basilares do contrato de seguro, por uma perspectiva de prevalência indissociável da mutualidade e do interesse segurável, diante de uma interpretação demasiadamente favorável ao consumidor individual. Reafirmei a necessária proteção do consumidor, a partir das formas legislativas como o Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas demonstrei que, mesmo no CDC, existe dispositivo de orientação a permitir uma aplicação simultânea com o Código Civil. Por exemplo, como não seria de adesão o contrato de seguro? Poderia o segurado debater preço, ampliação e aceitação de riscos impossíveis, se estes são fruto de cálculo matemático atuarial? Então, o fato de ser de adesão não pode ser nenhum demérito ao contrato de seguro e o juiz deve fazer esta correlação de forma equilibrada. Ao final do trabalho, propus a necessidade de implantação de um sistema de interpretação e aplicação das normas com vistas a exigir um dever de maior envolvimento do indivíduo consumidor (que já não é mais o mesmo consumidor de 30 anos atrás, quando o CDC entrou em vigor). Isto tornaria inclusive desnecessária uma maior positivação, uma nova legislação, pois bastaria uma aplicação equilibrada do CDC, simultânea aos elementos fundamentais do contrato, como o interesse segurado, o risco e o mutualismo.

Agora, penso, é necessário exigir uma atitude mais colaborativa, um dever compartilhado (consumidores, seguradoras, Judiciário) de proteção dos institutos e elementos do contrato de seguro, no que seria uma espécie de extrema boa-fé. Ao consumidor de hoje não é mais dado o direito de se abster, de não ler uma proposta com as regras básicas do que está contratando, de contratar desinteressado, sem ler minimamente as informações prestadas pelo fornecedor, pois se assim fizer, estará invariavelmente prejudicando toda a coletividade, como acontece com a mutualidade de segurados quando um indivíduo com apenas 5% de invalidez decorrente de um acidente (amputação de parte mínima de um dedo, por exemplo), recebe a integralidade da cobertura como se estivesse 100% inválido, apenas porque “não sabia” da possibilidade de ser indenizado parcialmente. O Judiciário atualmente sequer analisa esta alegação de que o segurado “não sabia” do funcionamento do seguro, as vezes condena a Seguradora sem que o segurado tivesse sequer alegado este desconhecimento, ou seja, presume que houve falha do dever de informação da seguradora. É evidente que este tipo de decisão viola a mutualidade do seguro, pois o dinheiro que serve para pagar esta indenização vem do fundo comum, ou seja, outros segurados, outros consumidores, é que estão pagando a indenização de 100% de invalidez para aquele indivíduo que teve apenas parte do dedo amputado, e isto não é justo com a coletividade. Então, as teses defendidas no trabalho de conclusão são perfeitamente aplicadas no dia a dia profissional.

Considero importante ressaltar que, desde o início, contei com todo o apoio do escritório Agrifoglio Vianna, de todos da equipe, principalmente da Dra. Laura, a quem agradeço muito. De novidade, acho importante informar que os integrantes do curso estão reunindo esforços para a publicação de um livro conjunto, uma obra em espanhol, organizada por um colega Colombiano, prevista para o próximo ano. Também posso adiantar que temos previsão de publicação de uma obra em português, com os colegas brasileiros, esta até mais adiantada, fruto direto das amizades que se formaram a partir da Especialização. Na verdade, ambos são frutos importantes do curso.

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