Marcelo Camargo: Duas décadas de avanços no Direito Securitário

Confira artigo do advogado do escritório Agrifoglio Vianna

“Embora os seguros já tenham alcançado três por cento do PIB, todos os que são mais próximos do mercado de seguros sabem que somos um dos países em que é maior o distanciamento entre conhecimento e atividade, na área. No Direito do Seguro isto é ainda pior. A cada momento, após décadas defendendo algumas teses, nos damos conta de que estamos criando alguns monstros que ferem os interesses de todo o mundo, da sociedade, dos segurados, dos próprios seguradores, e assim por diante”,

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A passagem acima não é atual, mas de quase 20 anos atrás. É parte do discurso proferido pelo jurista Ernesto Tzirulnik, Presidente do IBDS – Instituto Brasileiro do Direito do Seguro, na abertura do II Fórum do Direito do Seguro “José Sollero Filho”, ocorrido no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, entre os dias 01 e 04 de novembro de 2001.

O combativo IBDS, na pessoa do Dr. Ernesto, promoveu diversos Fóruns desde a sua criação em 2000, sempre com a presença massiva de consagrados juristas nacionais e estrangeiros da área dos seguros e civilistas de alto renome, como Athos Gusmão Carneiro, JJ Calmon de Passos, Ovídio A. Baptista da Silva, Ruben S. Stiglitz, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Sergio Cavalieri Filho, entre vários outros. Também presentes estavam integrantes do Poder Judiciário, especialmente os Ministros João Otavio de Noronha, Humberto Martins, Luis Felipe Salomão, e Paulo de Tarso Sanseverino.

O discurso de abertura trazia uma grande inquietude absolutamente justificada para aqueles que operavam o Direito do Seguro. A circunstância jurídica da operação não era bem conhecida no Brasil, a natureza jurídica do contrato menos ainda em face dos conceitos ultrapassados do então Código vigente, os conflitos decorrentes tinham solução estranha, que passavam ao largo dos elementos essenciais do seguro, como o interesse e o risco, afetando a mutualidade e o sistema como um todo.

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Passados 20 anos, em um balanço rápido, podemos concluir que o esforço, certamente conjunto, entre advogados, juristas e juízes, gerou resultados positivos práticos, ou seja, uma melhora sistemática no trato do seguro essencialmente em seu âmbito mais sensível, que é a interpretação empregada pelo Judiciário quando deparado com uma lide envolvendo tal matéria.

Uma lide é angustiante por natureza, e não menos o ato de julgar da forma mais justa possível a demanda. A entrega da prestação jurisdicional de forma plena é o compromisso e o objetivo final. Mas como fazer sem o conhecimento adequado? Sem uma lei adequada? Sem produção doutrinária nacional robusta?

É neste contexto que o esforço do IBDS e de tantos outros órgãos e instituições que defendem a propagação do conhecimento do seguro enquanto negócio, enquanto função de alcance de bem-estar social, cumpriu e cumpre o seu papel, gerando produção doutrinária contundente, debates francos e abertos entre especialistas de mercado, atuários, doutrinadores nacionais e estrangeiros, e o Judiciário.

Prova da evolução constante, e apenas exemplificando, são as diversas Súmulas envolvendo a matéria de seguro editadas pelo STJ nos últimos anos, especialmente ante as sensíveis mudanças trazidas pelo Código Civil de 2002.

Com destaque temos a Súmula 610, que após anos de incorreta interpretação sobre o tema suicídio – que avaliava itens de impossível avaliação, como premeditação, com qual finalidade – pacificou o entendimento de que sendo cometido antes do período de carência de dois anos da apólice, não tem cobertura. Paira o fantasma da modulação dos efeitos desta mudança jurisprudencial, uma espécie de verdadeiro “direito adquirido ao anterior entendimento”, como se não houvesse desde 2002 expressa e literal determinação legal neste exato sentido. Ainda assim, uma evolução em termos de estabilização de jurisprudência.

Muito importante é a Súmula 609, que regula a situação de negativa da seguradora em face de doença preexistente ao contrato, consolidando entendimento de que os exames prévios não são condição para a negativa de indenização, pois é facultado à Seguradora provar a má-fé do segurado de várias outras formas, como a omissão propositada de doenças graves no questionário de saúde que acompanha a proposta de seguro, por exemplo.

Outras Súmulas infelizmente não alcançaram o sentido correto, tal como a 620 que trata da embriaguez enquanto razão para negativa de indenização em seguro de vida.

Aqui houve uma grande confusão entre exclusão de cobertura e risco agravado, o que demonstra uma certa incompreensão de um dos elementos essenciais do contrato. De se destacar o entendimento recente firmado no julgamento do Resp. 1.866.860/RS, quando o Ministro Relator refere não haver possibilidade de se reconhecer a má-fé do segurado durante a execução do contrato, mas tão somente na fase pré-contratual, logo, a embriaguez não seria um ato de má-fé suficiente a acarretar a perda de direito.

Ora, se o portador do risco se comporta de maneira a alterar substancialmente o que normalmente se espera dele, aumentando as chances de um sinistro, há o agravamento, o que em nada se confunde com exclusão de cobertura. O agravamento pode ocorrer não só pela embriaguez, mas por vários outros fatores, e não só em atos acidentários no trânsito de veículos, mas em qualquer circunstância, como o segurado que embriagado agride a esposa e acaba morto por ela em legítima defesa.

Do ponto de vista exclusivamente jurídico, não se vislumbra diferença entre as duas situações; se embriagado o segurado decide dirigir um veículo e causa a própria morte, ou se embriagado decide investir fisicamente contra sua esposa que em legítima defesa efetua disparo de arma de fogo, também culminando com a morte do segurado. Em ambas, no curso do contrato, houve conduta voluntária de agravamento do risco.

Se o objeto e até mesmo a causa do contrato é a garantia de interesse legítimo (e não mais a indenização como no Código de 1916), e esta prestação de garantia se dá ao longo de toda a vigência, o risco agravado em qualquer destes momentos é fator de perda de direito à cobertura, pois desequilibra a equação.

O teor do art. 768 do Código Civil não deixa dúvida a respeito da possibilidade do agravamento de risco no curso do contrato, enquanto é prestada a garantia.

A intencionalidade exigida pelo dispositivo diz respeito à conduta do segurado (há de ser uma conduta voluntária) e não ao resultado da sua ação. Careceria de sentido se a lei exigisse que o segurado desejasse o sinistro, pois o sinistro, por sua própria definição, é um acontecimento que o segurado não deseja; por isso, também é imprópria a comparação com o suicídio, que, segundo a jurisprudência (para casos que fogem o cometimento no período de carência), é ato praticado pelo segurado em tal desequilíbrio psicológico que a própria voluntariedade da sua determinação encontra-se comprometida.

E já no apagar das luzes de 2020, sobreveio decisão no Resp 1.825.716/SC, publicada em 12/11/2020, concluindo que, nos seguros de vida em grupo, o dever de informação ao segurado a respeito das especificidades das coberturas contratadas cabe exclusivamente ao Estipulante, e não à Seguradora.

Eu particularmente considero esta decisão uma síntese destes últimos 20 anos de erros e acertos, de evolução lenta da análise dos aspectos jurídicos do contrato, e da percepção da importância do seguro na sociedade.

Nela, o Ministro Relator faz expressa menção ao termo “correção de rumos” quanto à matéria que virou verdadeiro assombro no seguro de pessoas, em especial no de vida e acidentes pessoais coletivo: a famigerada falha do dever de informação e como consequência, a condenação da Seguradora ao pagamento do capital segurado integral, em qualquer circunstância.

Ao longo dos últimos anos multiplicaram-se demandas com este específico fundamento, em todos os entes da Federação, com decisões, em sua grande maioria, aplicando desmedidamente o CDC e condenando a Seguradora, independente do seguro ser individual ou coletivo.

De fato, a correção de rumo se fazia mais do que necessária, era urgente. E não pelo fato de ser a favor ou contra a seguradora, mas por trazer estabilidade jurídica e social a um tema que multiplica lides e mais lides em todo o território nacional.

Mas há um fator curioso na decisão. Da leitura atenta do acórdão percebe-se que a conclusão do julgado está muito mais atrelada ao modo de contratação e funcionamento do seguro de vida em grupo, do que a algum elemento jurídico profundo e sofisticado.

Neste sistema de contratação, dito complexo pelo Relator, se o Estipulante é quem mantém o contato diário com o grupo segurado e consequentemente com aqueles que virão a integrar o grupo (seus funcionários, associados, cooperados, servidores, etc), seja por adesão voluntária ou compulsória – esta não tratada no acórdão – é ele, Estipulante, quem detém a obrigação de informar o segurado a respeito das coberturas que ele Estipulante escolheu.

Não foi necessária a aplicação de nenhuma nova teoria, tese, princípio, elemento essencial, nova legislação, mas sim, compreender que, no funcionamento especialíssimo do seguro de pessoas em grupo, o Estipulante é o mandatário do segurado junto à Seguradora, por expressa e antiga determinação legal, e neste passo, aquele que escolhe e contrata as coberturas.

A propósito, o fundamento legal utilizado está no art. 21 do Decreto-Lei n. 73/1966, e no art. 801 do Código Civil de 2002.

Portanto, as condições legais que possibilitaram esta decisão em 2020 já existiam desde 2003! Quantas decisões em sentido contrário transitaram em julgado antes desta correção de rumos?

Em tempo, na data de elaboração deste artigo, o referido processo pendia de julgamento de Embargos de Divergência no STJ, portanto, não é uma decisão consolidada ainda, em que pese decidida de forma unânime pela 3ª Turma. Tudo pode acontecer.

Daí a importância da manutenção de iniciativas como a do IBDS, assim como da AIDA Brasil (Associação Internacional de Direito dos Seguros) enquanto ambiente de produção de debates de altíssimo nível nos mais diversos ramos do seguro e segundo a melhor prática mundial.

E é neste contexto que se aviva a importância do fomento e surgimento de novos institutos e associações voltados ao estudo deste contrato e produção de obras ainda mais densas e específicas, de novos cursos tratando do Direito do Seguro, direcionados aos mais diversos públicos, desde a graduação nas escolas de Direito carentes do trato da matéria, até a pós graduação, da consolidação de parcerias multifacetadas entre a advocacia especializada e o Judiciário, na construção e recuperação de um diálogo rejuvenescedor.
Neste campo, podemos dizer que a OAB do Rio Grande do Sul, pela sua Comissão Especial de Seguros e Previdência Complementar, atualmente, vem fomentando uma interessante aproximação com o Judiciário Gaúcho e com as principais Universidades do estado, pelos seus grupos de trabalho específicos, no sentido de transmitir a importância institucional do seguro e da advocacia especializada em área tão rica de oportunidades, inclusive considerando que a sistemática do contrato de seguro é semelhante em várias partes do mundo, logo, permite um vasto campo geográfico de atuação profissional daqueles que assim pretenderem.

Espaço há. Seja para a evolução do estudo, seja para a evolução da jurisprudência, seja para a atuação profissional. É preciso apenas a atenção e a paixão dos grandes entusiastas.

O professor Ernesto Tzirulnik, naquele discurso ocorrido no Theatro São Pedro há 20 anos, disse: “Hoje, conversando com os músicos, falei das dificuldades, da correria; eles perguntaram se tudo isso valia a pena. Confesso que vacilei, antes de proferir um enfático ‘sim’. Então, para concluir, reprisarei uma frase muito conhecida de todos, do Fernando Pessoa: ‘tudo vale a pena desde que a alma não seja pequena’”.

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