ONG criada por operadora em seguros auxilia pessoas em condição de rua
Guerreiros dos Girassóis é gerida por Jane Lucas
As graduações em História e em Sociologia não livraram um senhor de 45 anos de passar pelas agruras de cinco anos sem moradia numa cidade grande. Mas o interesse em compartilhar experiências que as duas disciplinas acentuam nos indivíduos o ajudou a recuperar a motivação para reverter a condição de rua em que ele se encontrava. Contatado por um voluntário da ONG Guerreiros dos Girassóis, de Porto Alegre, ele começou a participar dos encontros denominados Terapia de Rua, não tardando a frequentar cursos de aperfeiçoamento profissional, receber apoio financeiro e ter a indicação de um emprego. No ano em que completava 50 anos, o sociólogo voltava a trabalhar, recebendo, então, o suficiente para pagar a própria moradia e a alimentação.
Outro participante dos encontros terapêuticos promovidos pela ONG gaúcha desde 2019 também tem momentos tocantes para relatar. Aliás, literalmente. Ele escreveu, em 2020, a obra Velha Vida, em que narra passagens de quem viveu nas ruas, com acontecimentos protagonizados pelo próprio autor ou por companheiros. O livro teve edição, lançamento e sessão de autógrafos viabilizados por voluntários da Guerreiros dos Girassóis.
A entidade também marcou na jornada de um baiano radicado em Porto Alegre, 40 anos, que perambulou, sem lar, pela capital gaúcha, por mais de três anos, sem contato com a família, em razão de problemas com drogas. Remotivado por ações da Guerreiros, ele recuperou a vontade de progredir na vida em sociedade, graças à prática de rumba combinada com terapia de grupo. Livre da drogatização, o baiano está de volta à cidade natal no interior da Bahia, reconciliou-se com a família e hoje trabalha regularmente.
A ONG revela orgulho, ainda, em ter ajudado uma moça de 30 anos, com histórico familiar complicado, a montar um negócio próprio, um brechó, que gerou renda à antiga moradora de rua, depois de ela ter participado das ações Terapia de Rua e Varal Solidário.
Todas essas histórias são verídicas, mesmo com o nome dos personagens preservados. E são exemplos de conquistas positivas que o trabalho sem fins lucrativos da Guerreiros dos Girassóis promove junto às pessoas em situação de rua de Porto Alegre, já pelo terceiro ano consecutivo. A ONG foi idealizada e é gerenciada pela corretora de seguros e professora da Escola Nacional de Seguros, Jane Lucas de Moraes, que completa 20 anos de mercado em 2021, num momento em que ela realiza o objetivo de compartilhar as experiências como instrutora para formação profissional e terapeuta sistêmica.
A Guerreiros dos Girassóis busca estender a mão às pessoas em condição de rua, de modo a minimizar o sofrimento delas, bem como, e de forma inovadora no Brasil, dar aos moradores de praças, viadutos e calçadas a oportunidade de trocar ideias, compartilhar experiências e ampliar conhecimentos. A ONG promove ações que consistem em distribuir, duas vezes por semana, alimentação para pessoas carentes na Praça da Matriz, no Centro Histórico de Porto Alegre; promover o cultivo de plantas nos parques e pracinhas; distribuir livros para a comunidade e abrir espaço para resenhar críticas dos moradores de rua; promover rodas de conversas, as quais podem derivar para a prática chamada terapia de rua, forma de interação entre as pessoas que visa remotivá-las a um nível que as permita sair da condição de rua em busca de dignidade.
Para detalhar esse projeto que é destaque no Rio Grande do Sul, a Revista JRS entrevistou a fundadora da Guerreiros dos Girassóis, a corretora de seguros Jane Lucas:
JRS: Com que palavras os voluntários da Guerreiros dos Girassóis fazem a abordagem às pessoas em condição de rua, na tentativa de convidá-las a participar de alguma ação da ONG, pela primeira vez.
Jane Lucas: O (a) voluntário (a) que vai para o trabalho de campo, apresenta necessariamente características pessoais de afinidade com esse tipo de atividade. Tem que estar disposto a se despir dos pré conceitos e das suas crenças internas de julgamento (certo/errado/culpado/inocente). Com esse desprendimento de si, a primeira abordagem se torna leve e fluída, porque existe no voluntário (a) a vontade de se conectar com esse “outro” que está a sua frente. O primeiro contato sempre vem através de palavras simples que fazem essa interligação e torna o outro ser humano visível: Bom dia – Boa tarde – Como você está?
As pessoas em condição de rua são receptivas à arte e à literatura?
JL: Sim. Embora cause estranheza levar esses “produtos” para a rua, há um desejo enorme de quem está nessa condição de “privações” de pertencer ao sistema social, através do acesso à informação/música/literatura e arte em geral. Sempre é interessante lembrar que um dos sistemas de inclusão, nas mais diversas sociedades primitivas, dava-se também através da arte, além da divisão do trabalho. Eles não querem apenas ter acesso aos livros para leitura, querem trocar ideias com os voluntários (as) sobre as leituras, com indicações de autores, percepção sobre determinada obra e etc.
Quais as atividades promovidas pela ONG cativam mais as pessoas de rua?
JL: Dentre as inúmeras atividades que levamos para a rua, as que mais cativam são a Terapia de Rua e a Biblioteca Móvel.
A Guerreiros dos Girassóis projeta estender ações como o cultivo de plantas e a biblioteca móvel em praças da periferia de Porto Alegre. Hoje, elas ocorrem basicamente no Centro Histórico.
JL: Sim. Os projetos visam abranger outros espaços geográficos, de forma a ampliar o alcance das nossas ações, levando as ferramentas já aplicadas e com resultados comprovados. Queremos contar para isso com as parcerias de outras ONGs e instituições privadas ou públicas.
Descreva as principais características da constelação sistêmica de rua.
JL: A constelação sistêmica de rua é uma das ferramentas terapêuticas utilizadas na Terapia de Rua (modalidade de terapia que vai ao encontro das pessoas nas ruas). Por ser terapeuta com estudos de formação de mais de 900 horas e atuação em campo por de cinco anos, entendi que poderia aplicar nas ruas as ferramentas terapêuticas que tinha expertise, criando assim a Terapia de Rua. O espaço amplo das calçadas e ruas a céu aberto passou a ser o espaço terapêutico, um lugar de reflexões e dinâmicas de exercícios curativos das dores internas, trazendo como resultados o movimento e a mudança individual e coletiva.
A constelação sistêmica familiar foi criada por Berth Hellinger e é também utilizada no campo do Direito Familiar (direito sistêmico). Entretanto, todas as suas aplicações que se tem conhecimento são realizadas em ambiente fechado (interno). Fomos pioneiros no Brasil ao aplicar as constelações sistêmicas no espaço aberto das ruas em trabalho de grupo. Por isso, a denominação Constelação Sistêmica de rua, aplicada pela primeira vez, com o apoio da Milene Scotti (da Scotti School da Inglaterra). Gosto de focar na característica da constelação sistêmica familiar que entendo como principal: olhar individualmente cada pessoa como um sistema complexo, em que é preciso entender, respeitar e se render às suas histórias pessoais (ancestralidade) e o quanto essas interferem nas escolhas de hoje.
Que experiências e aprendizados do tempo de Escola de Negócios e Seguros, antiga Funenseg, você utiliza nas atividades da ONG?
JL: Acredito que o grande legado que o tempo de Funenseg me trouxe seja a interação com as pessoas, o compartilhar do conhecimento, esse olhar mais de perto para cada um que passa por nós, porque cada aluno representava um universo à parte a ser visto.
De que forma os operadores de seguros podem ajudar o pessoal de rua?
JL: Os operadores do seguro são “agentes sociais” na própria essência do seu negócio, visto que minimizam sofrimentos e perdas através do apoio e conhecimento técnico. Acredito que podem expandir esse conceito, por intermédio de ações que possibilitem esse “levantar do chão”, sustentado nas bases de oferecer conhecimento, oportunidade de trabalho e geração de renda para que cada um dê conta de si mesmo. Podem doar livros, associar-se e contribuir com os projetos.
Quais motivos foram decisivos para você idealizar a ONG com as características da Guerreiros?
JL: Participo desde muito jovem de ações sociais em diversas instituições, mas sentia um certo “desconforto” com os objetivos e resultados das ações aplicadas. O olhar assistencialista, seja do ente privado ou público, sempre me incomodou. O que precisamos fazer enquanto sociedade é fornecer ferramentas para que as pessoas possam seguir de forma autônoma.
Em início de 2019, comecei com o projeto de levar cursos gratuitos de aperfeiçoamento profissional, certificados pelo Instituto Transcendere, destinados a adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Em junho do mesmo ano, organizei uma ação com os amigos e doamos cerca de 250 sacos de dormir para o inverno. Nessa mesma ação também foram fornecidas mais de mil sementes de girassóis para o plantio nas praças, canteiros e etc, como ato de dar forma a uma consciência de responsabilidade individual com a casa (rua) e o respeito à natureza que a abarca.
Em outubro, convidei novamente amigos para levarmos livros um sábado por mês junto ao viaduto da UFRGS, criando assim a Biblioteca Móvel, com voluntários (as) apaixonados por livros e dispostos a compartilharem essa “paixão”, com as pessoas da rua. E assim mais amigos foram se juntando e mais ferramentas foram criadas: a Terapia de Rua, o Varal Solidário, a Gestão de Rua. Hoje já somos mais de 70 pessoas. Voluntários (as) que apoiam e fazem a ONG Guerreiros dos Girassóis existir. Pessoas que trabalham nos bastidores ou na linha de frente, sempre unidas no mesmo objetivo: auxiliar indivíduos em situação de rua a gerir de forma sadia sua existência: emancipá-los do assistencialismo.
Como estão ocorrendo as ações durante a pandemia? Em que nível o distanciamento social tem prejudicado o trabalho da ONG?
JL: As nossas ações ficaram mais restritas, por conta da pandemia, mas não deixamos de fazê-las, justamente porque nesse período complicado é o momento de maior dificuldade para as pessoas que estão em situação de rua obterem alimentos. Seguimos levando semanalmente as refeições (todas as quartas-feiras) e os demais itens apenas quando existe a necessidade iminente. O distanciamento social tem prejudicado o trabalho da terapia de rua em grupo, a montagem da biblioteca móvel e também do varal solidário. Podemos dizer que estamos operando em campo com cerca de 30% das nossas ferramentas.