Por dentro das novas regras para cobertura de tratamentos por planos de saúde

Confira artigo de Juliana Martins Villalobos Alarcón, advogada especializada em Direito Processual Civil

Depois de muita polêmica em torno do veto presidencial total ao Projeto de Lei nº 6330/19 do Senado Federal, que obrigava os planos de saúde a cobrirem gastos de clientes com medicamentos de uso domiciliar e oral contra o câncer, no último dia 3 de março foi sancionada a Lei 14.307/2022. A novidade reflete em importantes alterações na Lei 9.656/1998, dispondo sobre o procedimento de atualização da lista de coberturas obrigatórias no âmbito da saúde suplementar.

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Importante lembrar que saúde suplementar se refere ao conjunto de ações e serviços desenvolvidos por operadoras de planos e seguros privados de assistência médica à saúde e que não têm vínculo com o Sistema Único de Saúde (SUS). Já a regulação e fiscalização dessas atividades é feita pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), rigidamente regulamentada pela Lei 9.656/98.

Pela nova redação dada pela Lei 14.307/2022 ao §4º do art. 10, da Lei 9.656/98, a amplitude das coberturas para tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em hospital, não será mais estipulada por norma da ANS como previa-se anteriormente. Ainda assim, a obrigatoriedade dessas coberturas continua valendo como exigência mínima aos planos de saúde, conforme estabelecido nos incisos I e II do art. 12 da Lei 9.656/98, não havendo mais, contudo, previsão de limitação de sua amplitude.

Entre os tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluem-se medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes, bem como para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia.

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Comissão especial é uma das grandes novidades

Para solidificar ainda mais esse entendimento, a alteração da lei deu nova redação também aos §§ 6º e 7º do art. 10 da lei alterada, fazendo constar expressamente que referidas coberturas são obrigatórias em conformidade com a prescrição médica. Ou seja, uma vez prescritas e na forma em que prescritas pelo médico atendente do usuário do plano de saúde. Essa obrigatoriedade fica limitada, além da prescrição médica, apenas à necessidade de referidos medicamentos estarem registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com uso terapêutico aprovado para essas finalidades.

Outra novidade, com a nova redação dada ao §5º, do art. 12 da Lei 9.656/98, determina que o fornecimento de medicamentos e tratamentos agora deve se dar no prazo máximo de até 10 dias após a prescrição médica e diretamente ao paciente ou ao seu representante legal. Contudo, é obrigatória a comprovação de que o paciente ou seu representante legal recebeu as devidas orientações sobre o uso, a conservação e o eventual descarte do medicamento.

Chama a atenção também a criação da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, à qual compete assessorar a ANS nas atribuições de inserir novos procedimentos e eventos em saúde na área de transplantes e de procedimentos de alta complexidade. A Comissão será composta por representantes das seguintes entidades: Conselho Federal de Medicina; sociedade de especialidade médica, conforme a área terapêutica ou o uso da tecnologia a ser analisada; Associação Médica Brasileira; entidade representativa de consumidores de planos de saúde; dos prestadores de serviços na saúde suplementar; das operadoras de planos privados de assistência à saúde e representantes de áreas de atuação profissional da saúde relacionadas ao evento ou procedimento sob análise.

Ao parecer, a intenção do legislador com a Lei 14.307/2022 é de tornar os processos mais céleres, transparentes e participativos. A referida lei também estabelece a cobertura automática das tecnologias avaliadas e recomendadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e determina que cabe à ANS a definição do rol de cobertura para novos procedimentos e eventos em saúde na área de transplantes e de procedimentos de alta complexidade. Entende-se que, por essa razão, não poderiam tais eventos e procedimentos serem determinados pelos juízes, de forma individual e casuística em processos judiciais individuais.

Interessante o reforço da atribuição exclusiva da ANS, mediante a participação da sociedade civil, para aumentar o rol taxativo de coberturas obrigatórias referente a transplantes e procedimentos médicos de alta complexidade. Isso acontece por ser muito comum no judiciário o aumento da amplitude de coberturas, por força de decisões judiciais, de procedimentos não previstos no rol da ANS, sem o devido débito técnico científico. Essa prática gera extremo desequilíbrio contratual, distorcendo o princípio máximo do mutualismo que rege os contratos de planos de saúde.

De fato, como se sabe, o valor cobrado dos consumidores de planos de saúde é elaborado com base em cálculos estatísticos e atuariais que devem incluir uma reserva técnica, a fim de se garantir a solvência da operadora. Da mesma forma, é certo que a saúde suplementar possui caráter mutualista, isto é, um grupo de pessoas participa com uma pequena parcela a fim de financiar o risco dos integrantes do grupo colhidos pela área na saúde a que todos estão sujeitos.

Já o valor cobrado pelas operadoras é obtido por meio de cálculo atuarial. Basicamente, o total dos valores arrecadados para determinado exercício deve ser suficiente para pagar o montante de eventos em saúde ocorridos nesse mesmo exercício. Para esse cálculo, estimam-se os eventos a ocorrer, com base nos eventos ocorridos.

Nesse cenário, naturalmente, a concessão por decisões judiciais de coberturas para eventos não previstos pela ANS em seu rol taxativo acarreta a elevação considerável na expectativa de eventos e, consequentemente, na necessidade de provisão técnica para fazer face ao impacto. Como consequência direta tem-se o aumento nos preços cobrados pelas operadoras, prejudicando aqueles que não têm acesso aos planos de saúde de que tanto precisam para sua segurança.

Além das alterações mencionadas, a nova legislação traz também importante mecanismo para proteção da natureza mutualística dos contratos celebrados no âmbito da saúde suplementar, na medida em que reforça a competência exclusiva da ANS. As decisões judiciais individuais que ultrapassam essa competência ferem o equilíbrio econômico da avença, bem como a necessidade de harmonização dos interesses do consumidor com os interesses da coletividade, pois impõem o pagamento de procedimentos médicos que escapam aos cálculos atuariais das operadoras.

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